domingo, 28 de outubro de 2012

O mensalão e a crise da democracia partidária

A vontade de domínio político totalitário resulta de uma mentalidade que vê na democracia apenas um 'instrumento' para a construção de uma 'sociedade-partido', no melhor estilo '1984', de G. Orwell. O "Grande Irmão' tem um plano para dominar o mundo, independentemente dos meios usados para a conquista de tal feito. Tudo vale, vale tudo: comprar o mandato popular de parlamentares; apoiar genocidas do agronegócio; abraçar os apoiadores da ditadura; destruir o meio de vida de índios e ribeirinhos; corromper funcionários públicos; desrespeitar a Constituição Brasileira. A lista de 'meios' usados para tal finalidade deixaria até Maquiavel constrangido. E a opera assume tons fantásticos, com cenas surrealistas, com verdinhas circulando em cuecas e malas pretas, com ministros atuando nos bastidores do poder, convertendo a máquina pública num exército de uma quadrilha oculta, que age nos bastidores do poder partidário, manipulando tendência e instituindo um modo perverso de governar. Para essa ala dominante do PT paulista, a democracia é sinônimo de luta pela hegemonia totalitária: maquiavelismo na veia com alguns toques gramscianos.

Mas o mensalão de José Dirceu e Cia coloca a própria democracia em crise. Lembro que, em 1989, havia uma expectativa popular em torno de uma 'limpeza ética do poder'. Após décadas de regime militar, a sociedade brasileira viu-se diante da tarefa de construir novamente um estado de direito e democrático. Vivíamos o período pós constituinte. O tema da ética e da reforma do estado tomou a pauta dos candidatos, em um debate político acirrado e repleto de afirmações demagogas. Acabou ganhando, com o apoio da Organização Tabajara (Rede Globo), o zé bonitinho do momento. Collor era o 'caçador de marajás', o homem que prometia 'limpar' a corrupção e o mal uso da máquina pública da história do país. Um messias prometendo redenção. Como sabemos hoje, tudo não passou de uma grande encenação pirotécnica, uma retórica superficial que acabou levando o alagoano ao poder. O discurso sobre a ética - na política real do dia a dia - é agenciado nas lutas diárias pelo poder. Tempos depois tivemos que acertar as contas com o destino. O movimento 'cara pintada' - ao buscar recuperar o tema da ética na política - expressou a decepção do povo brasileiro em uma ainda recente e jovem democracia.

Depois veio o período "FHC", eleito sob a bandeira de um 'Real Forte' e uma economia que apresentava tendências claras de recuperação. Com o controle da inflação, teve também início uma lenta e ampla reforma neoliberal do estado, através de uma transformação profunda dos mecanismos de exercício do governo. A tecnicização da política deu origem a uma governamentalidade neoliberal que ainda se mantem ativa e atuante até hoje. Os programas de privatização tucanos são uma grande 'caixa preta' de corrupção e descaso com o poder público. Para se manter no governo e governar, FHC estabeleceu relações fisiológicas com setores à direita do prisma político, como o antigo PFL (hoje DEM). Instituiu-se ali uma nova tecnologia de governo: um tecnicismo academicista (com forte viés economicista) apoiado em uma base política 'vampiresca'. Enquanto FHC reformava e tecnicizava de um lado, seus aliados se deliciavam com o mercado das privatizações do outro. Foi o período triste do Estado Mínimo, do descaso com a saúde e com a educação, de perseguição aos movimentos sociais. Não há dúvida de que o governo do PSDB enredou-se em sua própria malha de apoio, rendendo-se ao velho estilo fisiológico de fazer política performado pelos setores mais conservadores da política brasileira. Sem falar que foram oito longos anos sem aumento para diversos setores do funcionalismo público, oito anos de sucateamento do ensino público superior.  

Foi a partir desta conjuntura de decepção e amargura que o PT construiu o seu caminho em direção à presidência da república. Baluarte da ética no poder público, os petistas perseguiam os corruptores e corruptos diariamente, colocando-se como uma 'estrela' em um céu escuro e sinistro de corrupção e descaso com o bem público. As irregularidades associadas ao processo de privatização ocorrido no Governo FHC foram alvo da metralhadora giratória de figurinhas como José Genuíno e Dirceu. O PT da oposição era um forte porta-voz da mudança e da ética na política.

Mas ainda faltava algo. A simples retórica da ética não era suficiente para convencer os patrões da mídia, os empresários, as indústrias, os bancários, enfim, todos os agentes formadores de opinião pública. Foi então que entrou em cena o 'maquiável brasileiro', costurando literalmente as parcerias que levaram Lula ao poder no início do século XXI. José Dirceu costurou uma complexa rede de apoio político, sendo que parte dessa rede manteve-se sempre nos bastidores, financiando a campanha milionária que levou Lula à presidência da República. Somente hoje, com a conclusão do julgamento do 'mensalão', podemos avaliar a profundidade e a densidade das associações políticas e econômicas que conduziram o primeiro presidente operário ao poder da república.

Mas a regra da política-partidária é básica: todo apoio será cobrado em dobro mais a frente. Foi assim que o núcleo político do PT paulista levou o primeiro governo Lula à enredar-se na sua própria rede, reproduzindo o mesmo erro de FHC. Sob a bandeira de um 'pragmatismo' vazio, nos bastidores da república, uma verdadeira máfia de corruptores e corruptos se formou na penumbra da noite, sob o manto pardo do poder republicano. Usando do dinheiro do contribuinte, os antigos porta-vozes da ética na política deram início a um audacioso plano para conquistar o Brasil e o mundo, tendo no comando José 'Cérebro' Dirceu e José 'Pink' Genuíno. Nesse caminho incerto, formou-se o núcleo de gestão fraudulenta.

Como um vírus que cresce e avança quando não encontra obstáculos ou quando consegue vencê-los sem maior resistência,  esse núcleo fraudulento e corrupto foi aos poucos construindo sua hegemonia no governo e no partido, com o expurgo dos honestos e o estabelecimento de novas parcerias utilitárias. De uma hora para outra, as antigas vítimas da metralhadora giratória petista passaram a pousar ao lado das lideranças do PT: reis da soja e do agronegócio, grileiros; empresários; José Sarney; Paulo Maluf; o inesquecível Roberto Jefferson, ACM e todos aqueles 'partidos-vampiros', que vivem sugando a máquina pública em benefício próprio. Nesse processo de busca de 'poder pelo poder', rasgou-se a Constituição Democrática e Cidadã e afundou-se a história do principal partido da recente democracia brasileira. Quando o voto de parlamentares e eleitores é transformado em uma 'mercadoria' de barganha ilícita, os valores democráticos entram em profunda crise institucional.

Surge deste contexto sinistro um herói pouco provável: um STF composto por juristas escolhidos à dedo por Lula, a direção nacional (paulista) do PT e seus ministros mais próximos. O 'feitiço' virou contra o 'feiticeiro'. O Castelo de Areia (Kafka) desmoronou-se por completo. O julgamento do mensalão revelou aos brasileiros e ao mundo esta face obscura e sinistra do 'novo PT' de José Dirceu e Cia. Nesse processo histórico, o partido foi transformado em uma empresa, introjectando a lógica nefasta do neoliberalismo, que transforma sonhos e pessoas em números, estatísticas e cálculos de 'custo e benefício'. Aprimoraram-se as tecnologias governamentais em busca de um controle totalitário e absoluto da população e do território: surge daí toda uma nova governamentalidade. A 'vida' humana e não humana é transformada pela lógica da economia política.

Quando o STF finalmente reconheceu, mapeou e identificou a malha de corrupção que perpassava os bastidores da república, a democracia já estava abalada em seus alicerces fundamentais. A mentalidade da hegemonia política inaugurada por Dirceu já havia conquistado adeptos por toda parte. A ética do vale tudo predominava por todos os corredores do Castelo. Assistimos à banalização da ideologia partidária em nome de uma política de alianças com resultados duvidosos. Nesse caminho, o projeto político emancipador - de caráter trabalhista - está se transformando em um projeto desenvolvimentista, que consegue reunir em um só programa de governo o pior da nossa história político-partidária: assistencialismo + desenvolvimentismo autoritário e totalitário. Vamos transformar o Brasil em uma grande 'Miami Tropical'.

Mas os idiotas não só perderam a modéstia, como também passaram a sofrer seriamente de 'bipolaridade'. De um lado, continuam atuando sob o manto trabalhista, colocando-se retoricamente ao lado dos trabalhadores e 'excluídos' da sociedade do grande capital; do outro, rasgam a constituição e convertem um projeto ideológico em um programa de consolidação de uma sociedade de consumo cujos pilares foram estabelecidos durante a Ditadura Militar. Surge o 'trator do PAC' atropelando tudo e todos que se colocam no seu caminho: ecossistemas, plantas,  animais, ribeirinhos, pescadores, comunidades tradicionais e indígenas. Vamos passar o Brasil à limpo, transformar este país em uma grande potência colonial. Nesse processo, toda forma de resistência do mundo da vida é domesticada por uma redução da discussão política  aos números e tabelas do planejamento contábil e empresarial: "O problema do neoliberalismo é, ao contrário, saber como se pode regular o exercício global do poder político com base nos princípios de uma economia de mercado" (Foucault, Nascimento da Biopolítica).

Ao lado dessa transfiguração interna da ideologia lulista promovida pelos seus assessores mais diretos, temos as políticas sociais de caráter 'reparatório', ora voltadas para a inserção dos setores mais pobres e miseráveis na sociedade de consumo, ora voltadas para a efetivação de um desenvolvimento predatório sustentado por um poderoso lobby político no congresso nacional. Enquanto a economia e os economistas vão muito bem obrigado, a política e a democracia vão mal. O esvaziamento do embate ideológico e político, a metamorfose constante de partidos e candidatos, tudo isso contribui para a falência do sistema partidário tal como o conhecemos hoje. A morosidade em realizar uma reforma política profunda agrava ainda mais o problema. Criou-se uma malha fina tecnicista que perpassa todos os campos de governamentalidade. O desenvolvimentismo se tornou a moda do momento e não existe espaço para o debate político.

Completa-se, aqui, o ciclo de transfiguração da consciência política operária surgida nos porões da ditadura, quando a vítima assume como sua a consciência dos seus algozes. Para entender esse processo com um todo, precisamos não só de uma teoria social, mas também de uma teoria psicanalítica.

 Os orquestradores desse genocídio da democracia justificam suas ações apontando para seus inimigos e dizendo: 'se eles também roubaram e continuam roubando, porque nós não podemos roubar?'. Ora, como diz um velho ditado popular, 'faz parte da natureza da cobra picar'. A corrupção ativa e passiva faz parte da essência da direita brasileira. O mensalão do PSDB não só era aguardado, como expressa a natureza deste partido. Nenhuma surpresa aí. Mas com o PT é diferente. O povo aguardava uma mudança de paradigmas na política brasileira. Ganhou em troca uma grande decepção e o desconto na compra da geladeira do ano. Vamos inflar o capitalismo e vender a democracia. Acabaram-se as utopias. Ao final da história (que é também o começo de uma tragédia coletiva), sobrou apenas uma malha extensa de corruptores e corruptos, que agem nos bastidores e contam com a cobertura política de um bando de avestruzes.

["Quando uma avestruz enterra sua cabeça na areia ao aproximar-se o perigo, muito provavelmente toma a rota mais feliz. Ela esconde o perigo, e então calmamente diz que não há perigo algum; e se sente de maneira perfeitamente segura de que não há perigo, por que haveria de levantar a cabeça para ver? Um homem pode passar a vida mantendo sistematicamente fora de vista tudo o que poderia causar uma mudança em suas opiniões" (Charles Peirce, Ilustrações da Lógica da Ciência).]

Vitória nas urnas, mas derrota na ética, na ideologia e na política. Com isso, nós, brasileiros, perdemos todos. Vivemos em uma conjuntura onde tudo parece se igualar, onde só temos a possibilidade de escolher entre o 'mesmo' e o "mesmo', entre o ruim e o menos pior, entre uma cesta básica e um pontapé no traseiro, entre a bolsa-família e um tapinha nas costas. Triste fim da democracia e da utopia: o projeto de emancipação e libertação da classe trabalhadora foi transfigurado em um programa de transformação de cidadãos em consumidores.

O que dizer numa situação como essa se não: 'aos vencedores as batatas'!
                                           
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