quinta-feira, 10 de maio de 2012

Heidegger & ANT: aporia ou complementaridade?

"No enunciado 'esse giz é branco', nós, os enunciadores, não percorremos aquele contexto relacional; não nos voltamos primeiramente para uma ou duas representações que, então, ligamos com o intuito de, por meio dessa ligação representacional, nos relacionarmos com esse giz branco. Ao contrário, tudo se dá de maneira totalmente diversa: antes da enunciação da proposição já estamos imediatamente relacionados com a coisa mesma, com o giz branco e, em verdade, não de um modo tal que só teríamos desse giz uma 'representação' em nossa alma. Ao fazermos a enunciação, já estamos antes nos mantendo junto ao giz. Nós, os sujeitos, nos relacionamos diretamente com esse ente (giz) mesmo; estamos junto a ele. A nossa, do sujeito, relação com o objeto é um direto 'estar junto ao' giz. Não chegamos primeiramente ao giz por meio do caminho do enunciado e do contexto relacional ao qual esse enunciado está supostamente atrelado, mas, inversamente, somente na medida em que já estamos junto ao giz, na medida em que já nos mantemos junto a ele, ele pode ser um objeto possível do enunciado. (...) O enunciado não é absolutamente o modo de acesso a esse giz. Somente porque antes do enunciado já estamos junto ao giz e não o alcançamos primeiramente por meio do enunciado como tal, somente por isso o enunciado, enquanto enunciado predicativo, pode se adequar à qualidade e ao modo de ser daquilo sobre o que esse enunciado deve versar. (...) O enunciar sobre... Já se movimenta no interior e, de certo modo, sobre a via de nossa permanência junto ao giz. (...) Nada de consciência, alma, ou mesmo apenas representações, imagens de coisas, mas somente nós mesmos, tal como nos conhecemos, estamos relacionados com o giz, nosso ser junto a um ente por si subsistente em sentido maximamente amplo".

Introdução à Filosofia - Martin Heidegger

Como podemos ver na citação acima, a representação do objeto (a imagem mental ou representacional que fazemos do mundo) não antecede a experiência de lidar com ele em contextos específicos. O giz não é representado antes de ser experimentado, mas é concebido na medida em que é experimentado. É através do uso dos objetos em contextos específicos que o sentido dos mesmos se revela à existência humana. O sentido do giz enquanto aparelho ou instrumento de escrita emerge na relação com um cenário composto por outras entidades associadas entre si, formando um sistema: o quadro negro, o apagador, o professor e sua platéia de alunos, uma sala de aula.

Até mesmo na sua origem primeira - que nos remete ao processo de concepção e fabricação do giz enquanto instrumento de escrita caracterizado por determinadas qualidades - foi preciso apreender as propriedades do gesso em contextos específicos de experimentação e interação, quando as suas qualidades sensíveis se revelaram enquanto vetor de interesse e observação. Antes mesmo de conceber o giz, o homem experimentou as propriedades sensíveis do calcário branco retirado das rochas sedimentares encontradas, por exemplo, nas Falésias Brancas de Dover, na Inglaterra (foto ao lado). A consistência e a brancura dessas rochas, assim como a grandiosidade de suas formas, deve ter atraído a atenção e o interesse humano. Ali terá tido início um lento processo de interação, investigação e experimentação que levou a determinação de uma entre outras propriedades do gesso: a capacidade de 'riscar' certos tipos de superfície.

Da mesma forma, a experiência do professor com o giz tem início muito antes dele entender o significado conceitual desse instrumento de escrita. Foi ainda nos primeiros anos de infância, quando ainda era criança e utilizava pequenos pedaços de giz para pintar o chão e as paredes de sua casa (para pavor dos pais), além de provar o seu gosto, ao ingeri-lo e testá-lo também de outras formas impróprias, que o professor entrou em contato pela primeira vez com esse que viria a ser, muito tempo depois, o seu principal companheiro de trabalho. Antes mesmo dele saber que um dia, ele, o giz, o quadro negro, e um modesto apagador, fariam parte de uma poderosa tecnologia de ensino, as qualidades sensíveis desse objeto se revelaram a partir de um intenso processo de interação e experimentação que teve início ainda na infância e se desdobrou em uma sequência de situações e contextos diferenciados.

Essa forma de pensar a relação entre o homens e os objetos tem levado alguns teóricos a um erro de interpretação das afirmações de Heidegger sobre a qualidade das 'coisas', dos 'seres vivos' e do 'homem". Segundo esses autores, o filósofo alemão 'ainda' estaria preso às limitações impostas pelo Grande Divisor "Natureza/Sociedade". Em parte, essa alegação é verdadeira, mas para entender o teor dessa afirmação, será preciso esclarecer antes alguns pontos importantes, para não corrermos o risco de 'jogarmos a criança fora junto com a água do banho'.  

De fato, para Heidegger, existe uma diferença entre coisas, seres vivos (Ex: plantas, animais) e o homem, como podemos ver no trecho abaixo:

"Ser junto a..., permanecer junto a... caracterizam inicialmente um modo, em conformidade com o qual nós, os homens, somos. O ente que, como homem, cada um de nós mesmos é, denominamos o ser-aí-humano, ou, de maneira sucinta, ser-aí. Denominamos existência um caráter fundamental do modo como o ser-aí é. (...) Isso não significa que outro ente não seria efetivamente real, mas apenas que o modo de ser junto a um outro ente é fundamentalmente diverso. Animais e plantas vivem; as coisas materiais, a 'natureza' em um sentido totalmente definido, subsistem por si; as coisas de uso são à mão. Terminologicamente resulta daí o paradoxo de que o homem não vive, mas existe. (...) Desse modo, considerando esses diversos tipos de ser do ente, podemos realizar a divisão da seguinte forma: o existente, os homens; o vivente: as plantas e animais; o ente por si subsistente: as coisas materiais; as coisas que são à mão; as coisas de uso no sentido mais amplo possível; as coisas que são consistentes: o número e o espaço. Segundo esses tipos fundamentais de ser, podemos caracterizar âmbitos ônticos, apesar de o aspecto desses âmbitos não ser essencial e primário" (Idem). 

Segundo Heidegger, existe uma diferença ôntica entre coisas, seres vivos e homens, mas essa diferença não implica em uma definição da agência como privilégio dos humanos ou uma limitação da abordagem ontológica ao universo humano (ver a diferença entre o "ôntico" e o "ontológico" nas primeiras páginas de "Ser e Tempo"). O homem, para Heidegger, é o único ente que dá sentido ao mundo, mas esse 'dar sentido' não é um exercício meramente cognitivo(as imagens mentais), que antecede a experiência de 'ser-no-mundo', mas se dá a partir da experimentação (enquanto imersão) concreta em um mundo de coisas e seres vivos: é através da experiência de lidar e, desta forma, associar-se com coisas e seres vivos em contextos de ação específicos que esses entes 'desvelam' o seu sentido. Ora, isso significa dizer que, apesar do homem ser o único ente que dá sentido ao mundo (como ser de linguagem), esse sentido se dá a partir da associação com coisas e seres vivos, ou seja, trata-se de uma agência de natureza compósita. Um giz branco, por exemplo, não pode ser representado como uma 'canoa' ou até mesmo como uma 'borracha' (assim como o gesso em pó não pode ser utilizado para 'navegar' ou 'apagar'), pois a experiência de lidar com esse objeto impõe certas limitações ao sentido que ele assume para os homens. É isso que as crianças apreendem a duras custas, quando se voltam às orientações dos mais velhos. O sujeito, aqui, não está separado do mundo e da natureza, mas se constitui a partir da sua imersão no mundo, o que inclui também a sua relação com os objetos e os seres vivos, cujo sentido se revela na experiência concreta e não no privilégio intelectual da representação cognitiva e mental. A prática de dar sentido é, de certa forma, compartilhada com objetos e seres vivos. Estamos diante de uma agência de natureza compósita, onde os humanos dão sentido ao mundo, mas fazem isso a partir da relação com as coisas e com os seres vivos que fazem parte do mundo. Esses seres se revelam a partir da experiência que o homem adquire ao lidar com eles em contextos específicos, como a sala de aula e, antes dela, os depósitos naturais de rochas sedimentares.    

Ora, quando Latour, Callon e Law propõem ampliar a agência para o universo dos não humanos, isso é feito a partir de uma redefinição conceitual da própria noção de agência. 'Agência', neste caso, deixa de ser definida pela "intencionalidade" dos agentes (o sentido que o homem dá ao mundo e a si mesmo), e passa a ser concebida como a propriedade de "fazer a diferença" no sentido que a ação assume em contextos específicos. Quando esses autores afirmam que os não humanos também possuem 'agência', eles não estão dizendo que coisas, animais e plantas 'estão' no mundo da mesma forma, mas que eles 'fazem a diferença' no curso da ação social, como podemos ver abaixo:

"Por contraste, se nos mantermos firme na nossa decisão de partir das controvérsias existentes sobre atores e agências, então qualquer coisa que modifique o estado das coisas ao fazer a diferença é um ator - ou, se ainda não possui uma figuração, um actante. Assim, a questão a se fazer sobre os atores é simplesmente a seguinte: ele faz a diferença na ação de outro ator ou não? (...) ANT não é a alegação vazia de que os objetos fazem as coisas no lugar dos atores humanos: ela simplesmente afirma que nenhuma ciência social pode existir se a questão sobre quem e o que participa no curso da ação é devidamente explorada" (Tradução livre, Reassembling the social, p. 71, Bruno Latour).

Ora, quando Heidegger insere a prática de sentido na experiência de lidar com coisas e seres vivos, redefinindo a existência humana como "ser-no-mundo", ele está reconhecendo a agência dos não humanos na definição dos limites  e potencialidades (materiais e intelectuais) da ação humana, incluindo aí a ação de dar sentido ao mundo. As coisas não pensam ou possuem intencionalidade, mas fazem a diferença nas práticas de sentido.         

Em nenhum momento a ANT afirma que um objeto como o giz possui intencionalidade, mas que as suas características materiais determinam, até certo ponto, o sentido que é dado a esse objeto pelo homem. Ou seja, o giz enquanto objeto (coisa), 'faz a diferença' nas práticas de sentido. Ao se associar ao giz e ao quadro negro, o homem se torna capaz de transmitir ideias para grandes plateias. Mas é somente através da experiência de uso do giz em contextos pragmáticos específicos que esse ente se revela enquanto algo que faz sentido para o homem. Isso significa que a ação humana é sempre de natureza compósita, ela se dá na relação de sentido que o homem estabelece com os objetos e os seres vivos. 

Afinal, a ANT não se reduz a alegação vazia de que humanos e não humanos são seres da mesma natureza (afinal, ninguém dúvida de que o giz e os seres humanos são seres existencialmente diferentes), mas que eles estão associados entre si, formando coletivos e definindo o sentido da 'ação social'. Não se trata, portanto, de uma simples ruptura com o Grande Divisor entre "Natureza X Sociedade", mas de uma redefinição das associações existentes entre esses dois universos e a forma como humanos e não humanos se associam para compor o 'social'. 

A crítica de Heidegger ao primado da representação sobre a experiência humana possui consequências teóricas inquestionáveis e desdobramentos que impactaram diversas áreas do conhecimento, incluindo aí os estudos da ciência. Isso me leva a concluir que - no que se refere à relação entre ANT e a abordagem ontológica de Heidegger - estamos diante de caminhos diferentes, mas que levam a lugares vizinhos. Inclusive, essa proximidade foi potencialmente explorada pelos estudos de ontologia política de John Law e Annamerie Mol.

O problema (e a razão da polêmica) é que, devido à barreira imposta por uma linguagem conceitual e um estilo narrativo de natureza 'filosófica', a leitura de Heidegger nas ciências sociais é feita por intermédio dos comentadores da área. A questão é que a maior parte desses comentadores faz uma leitura parcial (porque 'interessada') de Heidegger, o que leva a disseminação de mal entendidos baseados em imprecisões terminológicas. Isso reflete, para usar um termo cunhado por G. Stocking, uma incapacidade de historicizar a obra, ou seja, de remetê-lá ao contexto histórico em que foi originalmente concebida. Nesse leitura presentista, seletiva e apressada, corre-se o risco de não captar em Heidegger a potencialidade de noções conceituais e teóricas que ainda se encontram em estado de esboço, mas que já apontam potencialmente para desdobramentos posteriores, muitos deles levados adiante pelos críticos com inquestionável maestria.      

Retornarei a essa questão a partir de outro mal entendido: a noção de 'tecnologia' em Heidegger e na Teoria Ator-Rede.    

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