sábado, 24 de março de 2012

A reprodução do pensamento autoritário

"Como chegar a esta estrutura inconsciente?  (...)  Mostrando instituições que se transformam, esta, sozinha, permite destacar a estrutura subjacente a formulações múltiplas, e permanente através de uma sucessão de acontecimentos. (...) Assim, a etnologia não pode permanecer indiferente aos processos históricos e às expressões mais altamente conscientes dos fenômenos sociais. (...) Sua finalidade é atingir, além da imagem consciente e sempre diferente que os homens formam de seu devir, um inventário de possibilidades inconscientes, que não existem em número ilimitado; e cujo repertório e as relações de compatibilidade ou incompatibilidade que cada uma mantém com todas as outras fornecem uma arquitetura lógica a desenvolvimentos históricos que podem ser imprevisíveis, sem nunca ser arbitrários". 

História e Etnologia - Lévi-Strauss 

Diante da crença na linearidade da história, outro efeito do mito do progresso nacional, fatos extremistas como os planos de fascistas contra estudantes de ciências sociais da Universidade de Brasília revelam que o pensamento autoritário forjado por um Estado Ditatorial não desapareceu com os militares, mas continua sobre outras formas, disperso nas micro-relações diárias, na atitude de pessoas comuns, emergindo em surtos aparentemente isolados, mas constantes no cotidiano nacional. A intolerância diante da opinião política e ideológica do 'outro' é o reflexo de uma atitude comum em diversos setores da nossa sociedade: a incapacidade de refletir sobre os eventos que marcaram e continuam marcando a vida nacional. As informações são substituídas da arena pública numa rapidez impressionante. Os fatos se sucedem com tamanha rapidez que não há tempo para a reflexão.

Já tive a oportunidade de comentar aqui as reportagens fascistas de revistas como a Veja, formuladas a partir de mentiras e informações imprecisas, alimentando a incerteza diante de conquistas importantes dos índios, ribeirinhos e povos tradicionais que vivem no território brasileiro. A fábula midiática incita o ódio e o rancor diante da diversidade de opiniões. Com isso, todos perdemos. No caso de Brasília, salvaram-se em tempo os estudantes de um possível massacre. Mas estaremos realmente protegidos de outros surtos como este?

O pensamento autoritário não é uma particularidade do extremismo político e ideológico, pois está presente também na atitude fascista diante da diversidade sexual, racial e religiosa. Afinal, acompanhamos 'ao vivo' cenas de violência e preconceito gratuito: ataques contra homossexuais na Avenida Paulista; espancamentos de negros, mendigos e prostitutas; assassinatos de lideranças indígenas e ribeirinhas; a emergência de forças paramilitares nos morros cariocas; a violência e a irresponsabilidade no trânsito; a 'parceria' entre as forças de segurança pública, os políticos e os criminosos.

No Brasil como em outros países de democracia recente, a política é um campo de batalha que produz novas vítimas a todo momento. E uma parte da população assiste a tudo isso como se estivesse diante de um cenário cinematográfico. Junto com a reprodução prática da mentalidade e do comportamento autoritário, alimenta-se no imaginário nacional a crença no 'progresso' e no 'desenvolvimento'. Acreditamos estar 'evoluindo', mesmo sem saber ao certo se essa suposta evolução nos conduz ao passado ou ao futuro.  

É a mesma lógica que incita o intervencionismo autoritário do governo diante dos ribeirinhos e povos indígenas, passando por cima dos seus direitos constitucionais, em defesa do grande capital e do lucro das grandes empresas do setor hidroelétrico. Todos sabemos que Belo Monte é apenas a ponta do iceberg. Por trás desta obra reside todo um vasto esquema de corrupção financiado politicamente por Sarney e seus mandatários. É esse mesmo esquema que incita o descaso com o meio ambiente, a destruição das florestas e dos rios em nome de um produtivismo agro-industrial voltado para o mercado externo, onde os grandes fazendeiros e grileiros são os únicos que lucram. Diante disso, assistimos a uma substituição da biodiversidade pelo 'mono-agro-culturalismo', no lugar de plantas e animais, agora vemos vacas e bois espalhando-se pela Amazônia. Um exército bovino em marcha contra a sociobiodiversidade.

O 'desenvolvimento', neste caso, tem um objetivo muito específico: reproduzir as forças do colonialismo interno. De fato, estamos diante de uma forma de pensar a política e a sociedade forjada ainda nos primeiros séculos de domínio colonial: consumir com nossos bens naturais e culturais em nome do benefício e do lucro privado de uma elite que vê o Brasil como uma fonte de riqueza pessoal.

Mas o pensamento autoritário produz árvores a partir de antigos rizomas: a militante de ontem vira a tecnóloga de hoje! Na superficialidade da mudança histórica, nos interstícios do 'progresso' e do 'desenvolvimento nacional', esconde-se a lógica da reprodução estrutural de mentalidades autoritárias, agora camufladas por trás de um social-nacionalismo tupiniquim. O autoritarismo pseudo-nacionalista (porque extremamente colonialista), promove e incita o descaso para com as demandas dos povos indígenas e tradicionais. Os movimentos sociais estão fora da pauta do governo, que age para barrar toda e qualquer resistência a sua política desenvolvimentista.

Com isso, a sociedade brasileira dá um exemplo etnográfico claro de que as mudanças políticas e institucionais não resultam, necessariamente, em mudanças de mentalidade. Quanto mais tudo parece mudar, mais as coisas tendem a se reordenar de forma a reproduzir tendências e mentalidades 'profundas', que agem inconscientemente (ou conscientemente), ali onde a razão é subvertida pela emoção e o desejo.


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