terça-feira, 1 de novembro de 2011

Por um Consentimento Livre, Informado e Processual

O princípio do consentimento livre e informado já tem uma longa história no pensamento ocidental. Sem querer exaurir a questão, certamente, de grande complexidade, gostaria de chamar atenção para três condições necessárias para que o consentimento seja, de fato, efetivo. Mas antes de focalizar essas três condicionantes, vou retomar brevemente o contexto histórico de emergência da noção de consentimento.

Inicialmente, o consentimento livre e informado enquanto procedimento técnico de caráter jurídico surgiu no campo das chamadas "ciências da vida", como instrumento bioético de regularização da relação médico-paciente em pesquisas ou tratamentos envolvendo pessoas humanas. Esse preceito foi anunciado pela primeira vez logo após a 2ª Guerra Mundial, quando o mundo descobriu as atrocidades cometidas com os prisioneiros de guerra, obviamente, sem o seu consentimento. A questão foi tema de inúmeros debates envolvendo médicos e outros atores da sociedade, tornando-se um dos principais temas de debate e reflexão na bioética e áreas afins. Esse princípio foi promulgado como procedimento legal na Resolução 169/1996, do Conselho Nacional de Saúde, quando ficou determinado o seu uso em caso de pesquisas envolvendo seres humanos. Nesse contexto, o consentimento visa garantir o direito de autonomia decisória dos indivíduos ou pessoas humanas.

O mesmo princípio ético foi retomado em outra arena política, estou me referindo à luta pela defesa dos direitos indígenas. Desde a década de 1970, passou-se a discutir o consentimento como um instrumento importante para garantir o respeito à autonomia política dessas populações frente a investidas de pesquisadores e governos. Essa questão foi abordada no momento de discutir os procedimentos legais considerados necessários para a realização de pesquisas na área de desenvolvimento sustentável e bioprospecção em territórios indígenas, quilombolas ou habitados por "povos tradicionais", defendendo-se o direito desses povos, quando diretamente envolvidos nessas iniciativas, em consentir ou não pela sua realização. Conforme mencionei na postagem anterior, o consentimento livre e informado foi eleito como uma das garantias dos direitos indígenas defendidas na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho e na Convenção sobre a Diversidade Biológica (CDB - Rio, 1992), ambas promulgadas pelo Governo Brasileiro.

No geral, podemos citar três condicionantes de extrema importância para que o Consentimento seja considerado legítimo e eficaz, tanto no caso de realização de pesquisas, como também em situações de obras públicas de grande impacto local, como é o caso das obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC).

1. O aspecto "livre" do consentimento

Para que o processo de consentimento seja legítimo e não apenas uma formalidade burocrática é fundamental que os coletivos envolvidos diretamente em obras, políticas públicas e pesquisas, tenham a liberdade necessária para tomar a decisão que melhor corresponde aos seus interesses políticos, incluindo o direito de não-concordância. Para isso, é fundamental que os mesmos não sejam coagidos por outros atores interessados na questão, seja através de ameaças e outras ações de violência física, seja através de barganhas econômicas.

Como a maior parte dos procedimentos de consentimento envolvem também a discussão de formas e modalidades de repartição dos benefícios oriundos das iniciativas que estão sob consulta, é comum que o processo de consentimento envolva também a promoção de um debate sobre possíveis benefícios de ordem econômica advindos da iniciativa. No entanto, é importante observar que a discussão sobre formas de repartição de benefícios não deve ser tratada como uma condicionante do consentimento, mas como uma informação necessária para que as populações envolvidas nessas iniciativas possam tomar uma decisão consciente tendo em vista "o que está em jogo" em cada situação específica.

Mas quando o debate sobre formas de repartição de benefícios é realizado como uma modalidade de barganha do próprio consentimento, ou seja, como forma de compra do direito decisório dos povos envolvidos nessas iniciativas, verifica-se logo uma situação de total ilegalidade, tornando todo o procedimento de consulta prévia ilegítimo do ponto de vista ético. O direito de "consentir ou não" é prerrogativa dos povos envolvidos nessas iniciativas, não podendo, por se tratar de direito irrevogável e intransferível, ser tratado como mercadoria.

2. O aspecto "informado" do consentimento

O consentimento deve ser "informado", ou seja, para que os povos envolvidos nessas iniciativas possam exercer esse direito é fundamental que os mesmos tenham a sua disposição todas as informações necessárias e revelantes. Isso inclui dados importantes sobre as iniciativas em questão, como as atividades que serão realizadas, o seu cronograma e uma estimativa dos impactos que iram gerar na vida das pessoas diretamente envolvidas. Para isso, torna-se necessário que o Estado garanta a essas populações locais o acesso às informações necessárias, de maneira prévia à realização do consentimento, fornecendo aos mesmos o tempo necessário para que possam avaliar por si mesmo as consequências de tais iniciativas.

Como estamos falando de empreendimentos e iniciativas de alta complexidade tecnológica, política e social, temos que levar em conta o fato de que as informações devem incluir as diferentes perspectivas científicas e não-científicas sobre o advento em questão, incluindo não somente os laudos dos engenheiros, economistas e advogados, como também o posicionamento de cientistas sociais, lideranças políticas, biólogos e conservacionistas. É preciso levar em conta não somente o acesso à "informação", como também a qualidade dessa informação, i.e., se ela é adequada no que se refere à abordagem dos diferentes aspectos envolvidos na construção de uma hidroelétrica, por exemplo.    

Por outro lado, como boa parte das obras, políticas públicas e pesquisas envolvem o uso de uma linguagem conceitual extremamente especializada, tanto no que se refere aos aspectos jurídicos, como no que se refere aos aspectos tecnológicos e científicos, torna-se necessário não somente fornecer o maior número de informações possíveis (em termos qualitativos), como também os meios para que essas informações sejam "traduzidas" para a linguagem local, possibilitando um entendimento mínimo das questões em jogo.

É importante notar, no entanto, que não estamos diante de uma tradução meramente linguística ou  epistemológica. Não se trata unicamente de traduzir palavras, sentenças e frases de uma língua para outra. No caso em questão, o entendimento que irá garantir um consentimento realmente "informado" envolve, necessariamente, uma familiaridade com as questões em jogo, algo só possível a partir da experiência fenomenológica fornecida pela convivência a médio e longo prazo com as consequências e os efeitos dessas iniciativas. É preciso, portanto, que esses coletivos locais possam viver a tradução na prática, a partir da experiência dos seus efeitos concretos em suas vidas. No caso do consentimento, o termo "informado" deve ser entendido em um sentido mais amplo, pois não envolve unicamente informações escritas, mas também um entendimento humano mais profundo e denso da forma como determinadas ações ou eventos vão afetar a vida das pessoas, influenciando ou não suas formas de habitar o mundo. Isso nos leva a última condicionante que eu gostaria de expor aqui.

3. O aspecto "processual" do consentimento

Acredito que o consentimento não deve ser abordado como um evento único, definitivo, de caráter "prévio"  , i.e., algo realizado "unicamente" antes do início das atividades em questão.

Primeiramente, porque as informações necessárias para que as pessoas possam consentir a realização de uma iniciativa governamental ou científica não são geradas unicamente antes do início dessas atividades, mas durante todo o tempo de duração da iniciativa. Novos estudos são realizados e novas questões surgem a partir do conhecimento gerado em pesquisas anteriores. A ciência não trabalha unicamente por cálculo e antecipação. Apesar dos modelos matemáticos e estatísticos processarem as informações na forma de uma série de projeções quantitativas, outras tantas pesquisas só podem ser realizadas após o início das iniciativas. Outros estudos precisam de dados que ainda não estão disponíveis antes da realização de levantamento preliminares. Mais do que isso, alguns problemas ou objetos não são imagináveis sem a problematização teórica promovida por estudos iniciais ou intermediários. Enfim, na ciência como na vida, a informação é o efeito de um ciclo de acumulação e transformação que nunca tem fim. Por isso, é necessário incentivar a produção e circulação do maior número de informações possíveis, principalmente, no que se refere a sua qualidade técnica e abordagem disciplinar, incluindo também o posicionamento de setores da sociedade civil.

Por último, o posicionamento das pessoas sobre a questão do consentimento pode mudar na medida em que vivenciarem os efeitos concretos das atividades em suas vidas, o que só poderá ocorre após o início da obra ou pesquisa. Com isso, pessoas que, inicialmente, consentiram a realização de uma obra, por exemplo, podem voltar atrás quando vivenciarem pessoalmente o impacto das atividades de construção em suas vidas. Neste caso, estou me referindo a informações de ordem fenomenológica: "pessoas entrando e saindo", "barulhos e ruídos de todos os tipos", "a poeria das máquinas", ou até mesmo o "sentimento de insegurança". Trata-se de um conhecimento de ordem existencial, com origem na experiência humana, que fornece "informações" dificilmente disponíveis antes do início das iniciativas.

Não estou querendo promover a ideia de que o consentimento deve ser realizado unicamente após o início das atividades em questão, o que seria um total contra-senso. O que estou argumentando é que o consentimento seja pensado e praticado como um "processo sempre em aberto", algo que tem início, mas dificilmente tem um fim pré-determinado. Para isso, é necessário tratar o consentimento não como um "contrato", mas como uma "relação humana", concedendo às pessoas diretamente impactadas por obras e pesquisas o direito de, a qualquer momento, refazer ou modificar a sua posição frente ao consentimento, seja no sentido de "passar a permitir" ou "não permitir mais".

A solução para resolver esse impasse talvez consista em realizar uma consulta prévia e informada antes do início da iniciativa em questão, momento em que se deve produzir e disponibilizar o máximo de informações possíveis, para que os interessados possam agir com conhecimento do que está inicialmente em jogo. Mas essa consulta inicial não deve ser de caráter "definitivo", cabendo ao Estado garantir que outras consultas sejam realizadas durante toda a execução da obra ou pesquisa, fornecendo às pessoas a possibilidade de modificar o seu posicionamento na medida em que forem tendo contato maior com os efeitos "fenomenológicos" dessas atividades em suas vidas.

O princípio do consentimento preza pelo direito das pessoas, povos e comunidades decidirem sobre iniciativas realizadas em seus territórios e que resultem num impacto em suas vidas. O Estado, assim como indivíduos ou empresas, não podem promover ações que resultem em um impacto negativo ou indesejável sobre a vida das pessoas sem o seu consentimento, mesmo quando essas ações visam fins de interesse "nacional". Em casos onde existe um conflito entre o que o governo entende como "interesse nacional" e os interesses das populações locais, caberia buscar garantir um ambiente de diálogo e discussão, permitindo o tempo necessário para que os diferentes setores da sociedade possam se posicionar, inclusive, diante da busca de outras alternativas cujos impactos não sejam da mesma ordem.

Esses preceitos são de ordem constitucional e estão de acordo com os acordos e convenções internacionais assinadas e promulgadas pelo governo brasileiro.

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