terça-feira, 2 de agosto de 2011

Redes Sociotécnicas, Práticas de Conhecimento e Ontologias na Amazônia

O dia da defesa está se aproximando. Estou disponibilizando logo abaixo o sumário da tese para quem quiser se informar um pouco mais sobre a pesquisa. Em linhas gerais, a tese foi concebida a partir de uma interface entre a antropologia da ciência e a etnologia, tendo como tema o contexto histórico da regulamentação das pesquisas e iniciativas tecnológicas no campo da biodiversidade e dos conhecimentos tradicionais.

A proposta inicial foi abordar a forma como está ocorrendo o chamado "diálogo" entre as ciências ocidentais e os chamados "conhecimentos tradicionais" sob o novo contexto da regulamentação, marcado por uma problematização ética e política dessa relação. Após realizar um levantamento inicial no Conselho de Gestão do Patrimônio Genético - órgão do governo federal responsável por conceber e aplicar as novas diretrizes jurídicas nessa área - selecionei duas iniciativas para acompanhar em campo, ambas desenvolvidas na Amazônia. 

Uma dessas iniciativas foi abordada na primeira parte da tese. Trata-se de uma pesquisa realizada por uma rede de laboratórios de farmacologia da Universidade Federal do Amazonas, envolvendo a coleta de plantas medicinais e conhecimentos associados em uma comunidade ribeirinha, tendo como objetivo a concepção de fitoterápicos, medicamentos e outros produtos naturais. Trata-se da primeira iniciativa de bioprospecção envolvendo acesso à biodiversidade e aos chamados "conhecimentos tradicionais associados" autorizada pelo governo brasileiro. A escolha desse caso também se justifica pelo fato das pesquisas na área de produtos naturais ser um dos setores científicos mais diretamente envolvidos com a problemática da regulamentação. 

A outra iniciativa, abordada na segunda parte, envolve duas pesquisas realizadas pelo Instituto Socioambiental (ISA) em parceria com a Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN): um projeto sobre agrobiodiversidade em São Gabriel da Cachoeira e arredores; e outro sobre "paisagens ecológicas" entre os índios Baniwa do rio Içana. Os dois projetos integram o "Programa Rio Negro" e estão associados a um conjunto de "pesquisas interculturais" e desenvolvimento sustentável em andamento na região noroeste da Amazônia. Essas iniciativas compartilham a proposta de uma "metodologia participativa" e envolvem a atuação de pesquisadores indígenas nas etapas de coleta e sistematização de dados. A escolha dessa iniciativa se justifica porque os projetos na área de desenvolvimento sustentável - envolvendo a parceria entre ONGs ambientalistas e organizações indígenas - constituem um setor de pesquisa bastante envolvido nos debates sobre regulamentação. 

Na tese, busco descrever as práticas de conhecimento dos cientistas e das comunidades; e a sua relação com os objetos dessas pesquisas: em linhas gerais, plantas, lugares e saberes associados. Tendo como referência uma abordagem ontológica das práticas de conhecimento - inspirada pelos trabalhos de autores como Heidegger, Merleau-Ponty, Ingold, Law, Latour e Mol - busco descrever a relação dos diferentes coletivos envolvidos nessas iniciativas com os objetos de conhecimento, buscando entender como essas múltiplas ontologias entram em relação nessas iniciativas através de uma série de práticas de tradução (entendida à luz da Teoria Ator-Rede).

Essa discussão das práticas de conhecimento também envolveu uma interlocução com a noção de habitus em Bourdieu e Mauss; assim como uma reflexão sobre o fenômeno histórico do objetivismo científico e a sua relação com modos de subjetivação no campo das ciências e dos conhecimentos tradicionais a partir de um diálogo com o trabalho de Ian Hacking, Daston e Galison. 


A descrição das práticas de conhecimento dos ribeirinhos e dos índios envolvidos nessas iniciativas levou a uma discussão sobre o perspectivismo e o multinaturalismo (Viveiros de Castro), iluminada pelas formas que esses coletivos agenciam a relação com os pesquisadores e com o discurso científico, dando origem a fenômenos como a feirinha de comercialização de produtos agrícolas e a farmácia ribeirinha. Também abordei a emergência da categoria de "pesquisadores indígenas" como uma forma de agenciamento e domesticação dos pesquisadores brancos e seus conhecimentos e instrumentos de pesquisa.    

Na tese, também desenvolvo algumas reflexões sobre a noção de "redes sociotécnicas" tendo como ponto de partida uma série de problematizações teóricas e metodológicas próprias dos estudos da ciência e da "Teoria Ator-Rede" ("Actor-Network Theory"). Essas reflexões são desenvolvidas a partir de um diálogo com noções cunhadas por Deleuze e Guattari na obra "Mil Platôs" - rizoma, sistemas arbóreos, devir, linhas de fuga e desterritorialização, espaço liso e estriado e ciências nômade e de Estado -, tendo como cenário as formas de ordenação e coordenação das redes colocadas em prática pelos diferentes coletivos que atuam nessas iniciativas.      

O tema da regulamentação foi retomado nos dois capítulos da terceira parte - que reúne as conclusões finais da tese - a partir de uma interlocução com a noção de governamentalidade em Foucault e outros estudos mais contemporâneos sobre as formas modernas de governo e a sua relação com o discurso científico. Neste trecho final, também desenvolvi uma reflexão sobre os principais instrumentos da regulamentação, como é o caso dos dispositivos de consentimento informado e repartição de benefícios, tendo como referência a forma como esses instrumentos foram agenciados nas duas iniciativas.        

Após a defesa, vou montar uma nova página aqui com informações mais detalhadas sobre o trabalho. Assim que a versão mais definitiva estiver pronta (pós-banca), pretendo disponibilizar o texto final no blog. A proposta é, caso possível, tentar publicar a tese em livro ainda em 2012. 

Só relembrando, a defesa está marcada para o dia 04 de agosto, as 14 horas, no Departamento de Antropologia da Universidade de Brasília. A banca é presidida pela Profª. Marcela Coelho de Souza e composta pelos professores: Claudia Fonseca, Mauro W. B. de Almeida, Henyo Barreto Trindade Filho e Guilherme J. da Silva e Sá. Segue abaixo o sumário da tese.

REDES SOCIOTÉCNICAS, PRÁTICAS DE CONHECIMENTO E ONTOLOGIAS NA AMAZÔNIA: TRADUÇÃO DE SABERES NO CAMPO DA BIODIVERSIDADE
SUMÁRIO
PARTE I
CAPÍTULO I - BIOPROSPECÇÃO DE PLANTAS MEDICINAIS AMAZÔNICAS E A PRODUÇÃO DE FITOTERÁPICOS: FARMACOGNOSIA, REDE E ONTOLOGIA, 44
1. A Etnofarmacologia e o Projeto da Farmacognosia, 44
2. Identificação de espécies amazônicas como potenciais fitoterápicos, 49
    2.1. Por uma ciência amazônida, 51  
   2.2. Traduções e agenciamentos científicos: o processo de construção de um laboratório de plantas medicinais amazônidas, 54
3. Redes Sociotécnicas na Amazônia: farmacognosia, bioprospecção e fitoterápicos, 59
4. Plantas medicinais, conhecimentos tradicionais e fitoterápicos: pressupostos ontológicos, 68
    4.1. A planta medicinal, a farmacognosia e o ideal da multidisciplinaridade, 68
    4.2. O valor econômico e humanitário da biodiversidade e dos conhecimentos tradicionais e o risco de erosão, 71
    4.3. A cadeia produtiva de fitoterápicos: aproximação com a indústria e geração de renda, 74
5. Objetivismo científico e farmacognosia: o mundo-das-substâncias, 75
CAPÍTULO II - PRÁTICAS DE CONHECIMENTO NO LABORATÓRIO: DA PLANTA AO FITOTERÁPICO, 83
1. A coleta das plantas na Comunidade Nossa Senhora de Nazaré, 85
2. O levantamento etnofarmacológico: tradução e objetivação científica dos conhecimentos tradicionais associados às plantas medicinais, 88
3. As práticas científicas na bancada e o processo de transformação da planta em fitoterápico, 95
    3.1. O laboratório Planta-Piloto: secagem e processamento, 95  
    3.2. O laboratório de Fitoquímica: cromatografia, fracionamento e produção de extratos, 96
    3.3. O laboratório de Bioquímica: testes de bioatividade in vitro, 102
    3.4. O Biotério: testes de bioatividade in vivo, 107    
4. Formas de conhecimento no laboratório: práticas de ordenação, distribuição e objetivação científica, 110
     4.1. Reproduzindo o protocolo na bancada: temporalidade e conhecimento, 111
     4.2. Formas de Classificação: espacialidade e conhecimento, 116
  4.3. A relação dos pesquisadores com os actantes e o habitus laboratorial: objetivação científica formas de visualização dos dados e práticas de tradução, 120
CAPÍTULO III - HABITUS RIBEIRINHO, REDES COMUNITÁRIAS E PLANTAS MEDICINAIS, 127    
1. A Comunidade Nossa Senhora de Nazaré, 127
2. Ontologia e Plantas Medicinais: formas ribeirinhas de conhecer, falar e usar as plantas, 133
     2.1. O Mundo do Quintal: universo feminino e a poética do cuidado, 134 
     2.2. O Mundo da Mata: universo masculino e a poética da valentia, 141
     2.3. O Mundo do Curandeiro: hibridismo e a poética da tradução/transformação, 145
3. Redes Ribeirinhas e a Circulação de Plantas e Conhecimentos Medicinais, 149
4. Sazonalidade, Habitus Ribeirinho e Plantas Medicinais, 155
5. A "Farmacinha Ribeirinha": resiliência, tradução e agenciamento, 159

PARTE II
CAPÍTULO IV - AGROBIODIVERSIDADE, PAISAGENS E PESQUISA INTERCULTURAL NO ALTO RIO NEGRO: SOCIOAMBIENTALISMO, REDE E ONTOLOGIA, 168
1. O Socioambientalismo e o diálogo entre conhecimentos científicos e tradicionais no final do século XX, 168
2. O Instituto Socioambiental, o Programa Rio Negro e a Rede ISA/FOIRN, 173
3. Agrobiodiversidade e inventário de Paisagens Baniwa: pressupostos ontológicos, 181
     3.1. Mandioca, Agrobiodiversidade, Urbanização, Redes Sociais e Risco de Erosão, 184
     3.2. Trilhas, Conhecimentos e Paisagens Baniwa, 193
CAPÍTULO V - PRÁTICAS DE REGISTRO DA SOCIOBIODIVERSIDADE: A TRADUÇÃO/TRANSFORMAÇÃO DOS CONHECIMENTOS TRADICIONAIS EM DADOS CIENTÍFICOS, 199
1. As Expedições de Campo e os Aparelhos de Registro da Sociobiodiversidade, 200
     1.1. Entrevistas, Questionários e Cadernos de Anotação, 202
     1.2. Transectos, Coleções e Fotografias, 207
2. Os Aparelhos de Sistematização e Visualização da Sociobiodiversidade, 210
      2.1. Cartografia, 212
      2.2. Softwares, Banco de Dados e Diagramas, 215
3. Os "Pesquisadores Indígenas": formação, tradução e mediação cultural, 221
      3.1. As atividades de formação em técnicas de pesquisa: a produção do diálogo intercultural, 223
      3.2. Da pesquisa 'sobre' os índios para a pesquisa 'dos' índios, 226
4. Ontologias e Temporalidades: ciências e engajamento político-comunitário, 227
5. O Mapeamento do Mundo: a ciência enquanto máquina de tradução, 232
CAPÍTULO VI - ONTOLOGIAS AMERÍNDIAS E PRÁTICAS DE CONHECIMENTO NO ALTO RIO NEGRO, 237
1. Percorrendo as trilhas comunitárias, 240
2. O Mundo da Roça, 244
    2.1. A Origem das Manivas e o Mundo dos Ancestrais, 244
    2.2. Práticas de Conhecimento na Roça, 247
3. A história da pimenta, 251
4. Ontologias Ameríndias no Alto Rio Negro: múltiplos corpos-mundos, 255
CAPÍTULO VII - AGENCIAMENTOS INDÍGENAS DA PESQUISA "AGR-ARN": A FORMAÇÃO DA FEIRA E DA ASSOCIAÇÃO CULTURAL DOS AGRICULTORES INDÍGENAS "DIRETO DA ROÇA", 263
1. A Feira "Direto da Roça", 267
2. A maloca em dia de festa, 270
3. Associativismo, demandas políticas e valores comunitários, 275
    3.1. Assembléias e demandas da Associação, 279
    3.2. Valores Comunitários e a "chefia da maloca", 283
4. Devir-índio e Devir-Branco no Contexto Urbano: entre a festa, a feira e o associativismo, 285
CAPÍTULO VIII - OS "PESQUISADORES INDÍGENAS": DOMESTICANDO OS CONHECIMENTOS E A TECNOLOGIA DO BRANCO, 290
1. Pesquisadores Indígenas no Alto Rio Negro: diferentes trajetórias e gerações, 292
    1.1. Primeira geração: de liderança indígena a pesquisador, 293
    1.2. A geração intermediária: de pesquisador à liderança comunitária, 296
    1.3. A terceira geração e a institucionalização da pesquisa nas escolas indígenas, 299
2. Formas de Agenciamento da Pesquisa (pelos pesquisadores nativos), 301
     2.1. A Pesquisa Indígena enquanto saber-fazer, 301
     2.2. A Pesquisa Indígena enquanto domesticação da alteridade, 304
3. Os Conhecimentos e as mercadorias do branco nas Ontologias Indígenas do Alto Rio Negro: alteridade, risco e domesticação, 308

PARTE III
(CONSIDERAÇÕES FINAIS)
CAPÍTULO IX - PRÁTICAS DE CONHECIMENTO, ONTOLOGIAS E TEMPORALIDADES: ACORDOS PRAGMÁTICOS E OS DILEMAS DO "DIÁLOGO", 318
1. Múltiplas Práticas de Conhecimento, Múltiplos Mundos, 318
2. Ontologias e Temporalidades, 325
3. Múltiplas formas de pensar/viver o "diálogo" entre conhecimentos na prática, 337
4. Propriedade intelectual, Consentimento Informado e Repartição de Benefícios, 341
5. Acordos pragmáticos: convivência ou conflito de ontologias, 352
CAPÍTULO X - REDES SOCIOTÉCNICAS NA AMAZÔNIA: MÚLTIPLAS ONTOLOGIAS-TOPOLOGIAS, 359
1. Rizomas e Árvores, 359
2. Ciências Nômades e Ciências de Estado, 368
3. Ontologias e Topologias, 374
4. Alfândegas: governamentalidade, regulamentação e ontologia, 387
REFERÊNCIAS BIBIOGRÁFICAS, 399
APÊNDICES, 425
ANEXOS, 464

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