quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

Belo Monte e a Manipulação da Notícia pela Rede Globo

Nessa terça-feira, em Brasília, lideranças indígenas e ribeirinhas do “Movimento Xingu Vivo” fizeram uma manifestação política no Planalto Central contrária à construção da hidroelétrica Belo Monte. O evento foi noticiado nos meios de comunicação e, em especial, pelo Jornal Nacional (Rede Globo). A forma como a notícia foi editada revela claramente a confluência entre os interesses das empreiteiras e o posicionamento velado (mas eficaz) desta rede de televisão. Vejamos.

O evento político foi noticiado na última seção do telejornal. Antes disso, no entanto, ao final da seção anterior, os jornalistas noticiaram um “apagão” que ocorreu em São Paulo, ocasionado por um problema de “transmissão”. Apesar desse evento não ter qualquer relação com a notícia sobre a hidroelétrica, a mensagem sublimar tem início aí. É como se os jornalistas afirmassem: “olha como a energia é necessária em nossas vidas!”. Afinal, a matéria deu ênfase ao “caos” ocasionado pelo blackout.

O tema é retomado ao final do jornal. A notícia é curta e tem início com imagens retratando os manifestantes discursando em frente ao Senado. Um índio Kayapó devidamente ornamentado com suas pinturas de guerra, tendo ao seu lado a emblemática figura de Raoni, manifesta-se contrário à construção da hidroelétrica. Ao fundo, imagens dos manifestantes com bandeiras onde é possível ler apenas: “Não”. Devido à velocidade em que a imagem foi mostrada, não foi possível evidenciar o restante da frase, apenas que se tratava de um coletivo que diz “não” à construção da hidroelétrica. A menção direta à manifestação política acaba aí. Ficamos sem saber quem são essas pessoas que se deslocaram de ônibus durante horas para manifestar sua insatisfação. Índios de qual etnia? Estavam acompanhados por outros movimentos ou grupos? Há quanto tempo eles estão mobilizados? Não seria interessante entrevistar uma liderança do movimento para que ele pudesse expressar os objetivos da manifestação? Não, nada disso. A reportagem não pretende dar voz aos manifestantes e muito menos transmitir as suas razões políticas.

A segunda cena retorna para o estúdio. O apresentador menciona que a obra irá gerar energia suficiente para abastecer durante um mês inteiro uma cidade com 17 milhões de habitantes. A informação é noticiada de forma vaga e imprecisa. Afina, isso significa que a energia gerada pela hidroelétrica vai de fato abastecer uma grande cidade ou que a energia seria suficiente para abastecer uma cidade? Para onde vai, afinal, a energia que será gerada pela hidroelétrica? Essa informação não é revelada por um motivo bastante óbvio: a energia gerada vai abastecer fábricas e indústrias da grande São Paulo. Ou seja, a energia não vai abastecer nenhuma população urbana, mas grandes máquinas da indústria de metais pesados. Isso significa que a obra não vai beneficiar milhões de pessoas, mas apenas meia dúzia de empresários. Essa informação tão valiosa para que os telespectadores possam se posicionar frente ao fato político não é mencionada pelo telejornal. Devido à experiência dos jornalistas responsáveis pela edição, é evidente que a omissão da informação foi deliberada, i.e, por vontade política mesmo.

A terceira cena mostra uma entrevista com um suposto “representante” do movimento contrário à construção de Belo Monte. Apesar do seminário realizado no dia anterior, em Brasília (UnB), ter reunido inúmeros especialistas que estudam a questão há um bom tempo, nenhum deles foi procurado pelos jornalistas, que nem mesmo mencionaram a realização de tal evento. A pessoa selecionada para falar em nome do movimento tinha um forte sotaque estrangeiro, provavelmente, norte-americano. Nada contra os estrangeiros, muito menos contra aqueles que defendem os interesses do povo brasileiro. Mas é óbvio que a seleção de um estrangeiro para falar em nome dos índios atingidos pela barragem faz referência ao argumento de que os povos indígenas estão sendo manipulados por gente de fora que não está preocupada com os chamados “interesses nacionais”. A mensagem subliminar manipula um estereótipo extremamente presente nas classes médias urbanas: a de que os índios amazônicos estão sendo manipulados por ambientalistas estrangeiros. Apesar de existirem muitos ambientalistas estrangeiros engajados na defesa dos povos indígenas, eles certamente são uma minoria diante de todos os atores locais envolvidos na defesa do meio ambiente e da diversidade cultural. De qualquer forma, a relação entre o porta-voz e o coletivo de manifestantes não é explicitada.

Por último, o repórter entrevista um engenheiro da UnB que defende a construção de Belo Monte. Segundo esse sujeito, essa hidroelétrica – em comparação com outras obras do mesmo porte – representa o menor risco possível para o meio ambiente e para os povos localizados na região. Nenhum outro detalhe é mencionado. O enunciado foi apresentado através de uma “tabela comparativa”, onde os “impactos” de Belo Monte são comparados com os impactos ocasionados por outras hidroelétricas. Veja bem como a informação, em si, não nos diz nada. Afinal, qual foi o tamanho do impacto ambiental e social das outras obras? Essa informação é importante, pois sem ela não conseguimos avaliar a magnitude dos impactos de Belo Monte. Mas o dado, neste caso, não foi construído para esclarecer as condições de sua produção, mas para convencer e formar a opinião pública nacional.

A notícia também transmite a idéia de que a obra vem sendo discutida há mais de trinta anos, tendo passado por várias modificações. Isso dá a entender que existe um debate público sobre a questão, quando de fato não existe. Mais uma vez, as omissões de informações contextuais e históricas são significativas. Não ficamos sabendo nada sobre a polêmica que tem acompanhado a emissão das licenças pela FUNAI e pelo IBAMA ou até mesmo sobre o direito de consulta prévia das populações diretamente atingidas. Enfim, vários acontecimentos são deliberadamente omitidos do conhecimento público. Sinal claro de manipulação deliberada da notícia.

Nada é mencionado sobre o financiamento público da obra e não existe nenhuma discussão sobre a sua real viabilidade econômica. Também não ficamos sabendo quem são os empresários que estão recebendo para construir a obra ou até mesmo quantos trabalhadores serão mobilizados para a região. A notícia, portanto, se limita a apresentar a construção da hidroelétrica como um fato inevitável da modernização.

Infelizmente, enquanto tivermos que lidar com este tipo de manipulação dos fatos pela mídia, nunca vamos conseguir avançar em temas tão importantes para a vida em sociedade, como os direitos humanos e os valores democráticos. Depois os jornalistas dessa emissora enchem a boca para se referir à suposta boa qualidade do seu jornalismo. Até onde eu sei, o compromisso do bom jornalismo é relatar as diferentes versões do fato, possibilitando que o próprio telespectador se posicione politicamente. No entanto, não é isso que vemos ocorrer em grandes emissoras como a Globo. A manipulação das notícias é gritante e completamente contrária ao código de ética dos jornalistas. Depois, quando a sociedade e o governo mencionam a necessidade de termos algum instrumento de controle social da mídia, algo como um observatório social, os representantes dos grandes meios de comunicação acenam com o retorno da censura no Brasil. Existe uma grande diferença entre o controle exercido em uma democracia do que aquele exercido na ditadura. Colocar essas duas formas de controle social com se fossem a mesma coisa é manipular, mais uma vez, a opinião pública nacional. A função social exercida pela grande mídia é de extrema importância para a nossa sociedade, pois esses meios de comunicação exercem um poder de formação de opinião imenso. Por isso, para que esse poder não seja exercido indevidamente, precisamos instituir alguma forma de controle. Esse controle, no entanto, exerce uma função completamente diferente da censura, pois visa garantir os valores democráticos e o código de ética do bom jornalismo, o mesmo que foi varrido das edições dos grandes telejornais há muito tempo.

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