terça-feira, 7 de setembro de 2010

Sociedade & Conhecimento: a socio-lógica das associações

No seu livro O Saber Local (1997), Clifford Geertz propôs uma etnografia nas “aldeias intelectuais”, espaço da experiência política, moral e pessoal dos atores que nela circulam. O autor afirmou que a antropologia precisa deslocar o seu olhar na direção dos espaços de produção científica, como os laboratórios, os institutos de pesquisa, os departamentos universitários e as sociedades científicas. Tal deslocamento deve ser um empreendimento histórico, comparativo e interpretativo com especial interesse nas categorias lingüísticas utilizadas pelos pesquisadores no processo constante de ordenação da experiência, o que significa considerar a cognição, a percepção e a imaginação que fazem parte do fazer científico, como construções sociais e, portanto, elementos de reflexão antropológica.

O livro Ciência em Ação (2000) de Bruno Latour representa um marco nos estudos sobre o fazer científico, principalmente, pela perspectiva teórica e metodológica assumida pelo autor. A sua proposta primordial consiste em analisar o fato científico no seu processo de construção coletiva. Para colocar em prática este intento, Latour propôs algumas regras e princípios metodológicos. A noção de “caixa-preta” e a proposta de sua desconstrução através de flashbacks, por exemplo, indica a diferença entre abordar a ciência pronta e a ciência em construção. A partir de um conjunto de exemplos ilustrativos, Latour demonstrou a particularidade de sua abordagem: seguir os cientistas em suas atividades cotidianas, perceber suas ações e associações. Segundo o autor, a atividade científica é um fazer coletivo que depende não só do conteúdo dos enunciados, mas também da forma que estes enunciados são utilizados e relativamente transformados por outros agentes, sejam eles da comunidade científica ou não. Apreendemos então que o status das afirmações está em constante disputa e depende das observações posteriores que serão tecidas por terceiros.

Conforme argumentou Latour, no processo coletivo de construção de fatos, diferente do que afirmou Aristóteles, a retórica exerce uma função fundamental. No entanto, principalmente se tratando de argumentos científicos, a arte do convencimento dificilmente está sozinha e geralmente costuma andar acompanhada de aliados: teorias, autores, equações matemáticas, tabelas, instrumentos de leitura e testes de laboratório. As afirmações de um cientista apresentam-se como mais ou menos resistentes diante de provas de refutação. Esta resistência não é meramente de ordem quantitativa (quanto maior o número de provas, melhor), mas qualitativa, ou seja, depende daquilo que o autor chamou de táticas de posicionamento: empilhamento (do específico para o geral); encenação e enquadramento (o leitor enquanto personagem semiótico); e captação (o movimento do leitor tem que ser previsto e controlado). Todavia, para um leitor desconfiado e decidido em investigar a origem dos enunciados essas táticas são ainda insuficientes.

É preciso ir do texto ao laboratório. Somos convidados a ver o fato científico com os nossos próprios olhos. Esta incursão, no entanto, não nos revela a “Natureza”, mas os instrumentos de sua fabricação. Ao propor a problematização do “realismo do laboratório”, Latour abriu todas as caixas-pretas e apresentou uma ciência em processo de construção. Como saber se o resultado (fato) não tem sua origem no cenário construído pelos instrumentos? Realidade, em última instância, é aquilo que resiste aos testes de força.

Entretanto, a proposta mais estimulante e que de certa forma surge como um reflexo da abordagem propositiva de Latour é a proposta de refutação dos “tribunais da razão” a partir de uma análise do ciclo aspiral de acumulação do conhecimento e os conceitos de tradução e sócio-lógicas. Tais propostas estão relacionadas entre si e surgem de uma abordagem do fato científico enquanto constructo de agentes e associações que ocorrem fora e dentro do laboratório (ou academia).

Ao afirmarmos que “estamos errados ao limitar a construção de fatos aos cientistas”, somos levados a refletir sobre a relação destes com outros agentes (empresários, políticos, ativistas e etc.). A necessidade de negociação de interesses se torna inevitável, principalmente tendo em vista o alto custo dos laboratórios. Insatisfeito com o modelo de difusão - invenção, trajetória e desenvolvimento –, Latour propôs o seu conceito de tradução/translação. Negociar implica necessariamente permitir certo desvio nos objetivos iniciais, mas o cientista deve fazer de tudo para que este desvio seja o menor possível. Traduzir significa transpor interesses fornecendo novas interpretações de forma a constituir conexões entre lugares e agentes diferenciados. Surge, então, uma segunda proposta metodológica: é preciso pensar a ciência a partir da noção de rede de conexões e associações que está por toda a parte.

O passo seguinte consiste em romper com a oposição entre racionalistas e relativistas, consagrada, por exemplo, nas críticas de Ernest Gellner (1997) e a sua refutação militante do relativismo (ou o que ele entende por relativismo). O posicionamento de Latour diante dessa batalha virtual foi bem claro: a crença dos racionalistas no Grande Divisor vem do esquecimento do movimento de ir e voltar (observação e distanciamento) que constitui a prática científica. A sua dica foi mais clara ainda: diante das acusações de irracionalidade, precisamos observar o angulo, a direção, o movimento e a escala do deslocamento do observador. A acusação de irracionalidade é sempre feita por alguém que está construindo uma rede em relação a grupos e pessoas que se colocam no seu caminho. Por trás de todo conhecimento científico, existem expedições, coleções, sondas, observatórios e pesquisas anteriores que permitem às centrais de cálculo atuar nas distâncias mais remotas da imaginação humana. O exemplo citado pelo autor é bastante elucidativo: as caravelas que “descobriram” as Américas são apenas a ponta de um processo muito mais amplo. Por trás de toda caixa-preta existe certo número de ciclos de acumulação. Essa observação, no entanto, não significa uma apologia à continuidade, pois toda acumulação é um conjunto heterogêneo de rupturas constantes de antigas caixas-pretas e construção de outras novas.

O Grande Divisor, no entanto, só é dissolvido com os conceitos de sócio-lógica e simetria. Ao iniciarmos nossa reflexão a partir da quinta regra metodológica proposta por Latour - que devemos acompanhar as duas frentes de construção (interna e externa ao laboratório) simultaneamente - podemos questionar sobre a relação dos cientistas e os demais agentes e seus interesses. Conforme argumentou o autor, se não estamos interessados em incentivar o conflito entre crenças, ou criar alguma dicotomia grandiosa como os adultos e as crianças, os iluminados e os fundamentalistas (versão Gellner), resta saber de que forma devemos fazer para diferenciar as cadeias de associações. Afinal, a crítica simétrica não explica por que os cientistas (e outros sujeitos) estão brigando todo o tempo para criar assimetria entre suas alegações.

Durante todo o livro, utilizando-se de alguns exemplos, o autor demonstrou que quando resolvemos ir ao encontro do que outras pessoas alegam, acabamos por descobrir que outras coisas estão amarradas às suas afirmações. Após ilustrar seu argumento com alguns conflitos de classificação, Latour sugeriu que esses conflitos apresentam tensões entre estruturas lingüísticas que operam em sócio-lógicas diferenciadas. Ao abordar esses conflitos, o pesquisador deve se questionar sobre como são feitas as atribuições de causa e efeito; que pontos estão interligados; que dimensões e que força têm essas ligações; quais são os mais legítimos porta-vozes; e como todos esses elementos são modificados durante as controvérsias. As respostas que surgem dessas questões é o que Latour chama de sócio-lógica.

Ao analisar as classificações totêmicas, Lévi-Strauss percebeu que as lógicas prático-teóricas que regem a vida e o pensamento das sociedades “primitivas” são movidas pela exigência de cortes diferenciais, e que o mais importante não é exatamente o conteúdo (sempre arbitrário), mas a forma que esse sistema assume. Surge, assim, o argumento de que o totemismo não é uma instituição autônoma, mas modalidades arbitrariamente isoladas de um sistema formal que tem como função a conversão dos diferentes níveis da realidade social, um método para se assimilar toda espécie de conteúdo (uma grade). O autor concluiu: “como Durkheim parece ter entrevisto, às vezes é numa sócio-lógica que reside o fundamento da sociologia (1989, p. 93).

Quando Lévi-Strauss apresentou os dois caminhos que o pensamento percorre, um mais voltado para a intuição sensível e o outro para a abstração distanciada, fez questão de notar que não se trata de estágios desiguais no desenvolvimento do espírito humano. O pensamento mágico não é um esboço de outra forma de pensamento mais elaborado, mas um sistema bem articulado e independente da ciência. Nas palavras do próprio autor, “em lugar de opor magia e ciência, seria melhor colocá-las em paralelo, como dois modos desiguais quanto aos resultados teóricos e práticos, (...) mas não devido à espécie de operações mentais que ambas supõem” (Id., p. 28). Conforme uma metáfora utilizada por Latour (2000), as sócio-lógicas são “muito semelhantes aos mapas rodoviários; todos os caminhos vão a algum lugar, sejam eles trilhas, estradas (...), mas nem todos vão para o mesmo lugar” (p. 336). A tarefa de mapeamento de associações heterogêneas que seguem sócio-lógicas diferenciadas nos leva a perceber que a atividade intelectual é universal a todos os sistemas de pensamento, sejam eles “modernos” ou “primitivos”.

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